No Myanmar, vivem umas velhinhas com o rosto tatuado. Tinha medo dos seus olhos, que fossem tristes e que olhassem para o chão quando encontrassem os meus.

Acordámos em Mrauk U, depois de uma noite mal dormida por causa dos mosquitos. Tomado o pequeno-almoço (arroz, ovos estrelados, café solúvel e bananas), o nosso guia disse-nos que íamos andar numa carrinha especial, como não havia igual em mais nenhuma parte do mundo. Só percebi o que ele queria dizer quando a vi: uma carrinha de caixa aberta com dois assentos tirados de um carro, aparafusados na parte de trás. E assim viajámos durante cerca de 30 minutos, aos tropeções por caminhos de terra e pedras, até à margem do rio Lemro, passando por campos de arroz cheios de orvalho onde algumas pessoas ceifavam calmamente.

Vivem longe as velhinhas com a cara tatuada, no montanhoso Estado Chin. Não há estradas que nos levem até elas, só mesmo o rio: um imenso rio de águas calmas, ladeado por colinas cobertas por palmeiras e vegetação luxuriante.

Sentados num estreito barco de madeira com uma flor na proa, vimos desfilar ante os nossos olhos a vida à beira-rio. Nas margens, há palhotas de bambu assentes em estacas, que os habitantes movem para terrenos mais altos durante a época das chuvas. Nos restantes meses, quando a água do rio desce, aproveitam cada bocadinho livre para cultivar a terra, com a ajuda de vacas e de búfalos. No rio de águas castanhas, lavam, pescam, apanham pedras que servirão para construir estradas em lugares incertos e tomam banho – as mulheres totalmente vestidas, deixando que o sol lhes seque a roupa no corpo.

É movimentado o Lemro e há sempre barcos de madeira a passar, alguns tão rudimentares que deixam entrar água, pelo que tem de estar sempre alguém a vazá-la. Quando se cruzam connosco, por baixo dos chapéus de bambu, às vezes espreitam sorrisos e alguns jovens acenam-nos amigavelmente. Umas embarcações transportam pessoas, outras bens e há ainda uns barcos mais pequenos, quase rasos, que levam as tais pedras para Sittwe, a capital da região.

Pelo rio abaixo, deslizam ainda grandes jangadas. A cinco horas a pé de distância de onde estamos, há uma vasta floresta de bambus. Depois de cortados, os troncos são transportados para a água onde são atados numa espécie de plataforma gigante, levando uma semana a chegar a Sittwe, arrastados pela corrente.

Depois de duas horas de viagem, chegámos finalmente a uma aldeia onde vivem algumas velhinhas com teias de aranha tatuadas na cara, além dos dentes tingidos de vermelho e apodrecidos devido ao betel que mascam regularmente. Se estava à espera que se sentissem tristes e envergonhadas ao ver-nos, foi com olhos rasgados e sorrisos abertos que nos receberam, tendo-nos acompanhado pelo caminho principal até à escola onde já não há crianças com a face tatuada. Na verdade, estas mulheres pertencem à última geração a quem tatuaram o rosto durante a infância, já que nos anos 60 o Conselho Revolucionário que governou o Myanmar proibiu tal prática.

Segundo uma lenda Chin, era uma vez um rei birmanês que, de passagem pela região, ficou tão impressionado com a beleza das mulheres deste grupo étnico minoritário que raptou uma para a tornar sua escrava. Por causa disso, as famílias Chin começaram a tatuar o rosto das filhas para que ficassem feias e, assim, ninguém as quisesse levar para longe de si. Há outras lendas que dizem que as tatuagens visavam, antes, tornar as mulheres mais bonitas ou então diferenciá-las das restantes tribos.

Recentemente, li num artigo da BBC que as tatuagens variam, de facto, consoante as tribos Chin: umas têm teias de aranha (como as que vimos), outras linhas verticais, outras pintinhas em todo o rosto, etc. Segundo esse mesmo artigo, algumas mulheres recordam o dia doloroso em que foram tatuadas com espinhos enquanto outras já não se lembram e pensam que foram sempre assim. Nem umas nem outras questionam, porém, uma tradição que era comum a todas as meninas da sua idade. Como disse uma das senhoras Chin: “Isso tornava-nos próximas, todas partilhávamos algo. Acho que somos as únicas que restam.”

Contrariamente ao que temíamos, a aldeia onde cresceram não se assemelha a um “zoo” humano e as velhinhas Chin, apesar de quererem vender aos turistas os lenços coloridos que tecem, são pessoas generosas mesmo na pobreza. As casas dos habitantes são como as cabanas que vimos ao longo do rio, feitas com os materias que a natureza lhes oferece. Criam animais, galinhas e porcos, que circulam livremente pelos caminhos de terra. Não se pense, todavia, que pararam no tempo. À porta de cada casa, existe um mini-painel solar onde carregam o telemóvel, colmatando assim a falta de eletricidade.

No final, as velhinhas ofereceram-nos cachos de bananas e, entre risos marotos, pediram ao guia para dizer ao Paulo que o achavam muito bonito. A mim, deram-me carinhosamente a mão quando lhes pedi para tirarmos uma foto juntas e a uma turista idosa (mas mais nova do que elas) ajudaram-na a subir a rampa que conduzia à sua aldeia.

Para não quebrar o encanto, decidimos não visitar mais nenhuma aldeia no Estado Chin. Um pouco mais adiante, demos um passeio a pé na companhia do nosso guia, que nos contou que já tinha sido monge e depois agente da polícia, mas que não tinha gostado da experiência, porque os oficiais estavam frequentemente bêbados. Disse-nos ainda que não comia carne (só vegetais e peixe fresco) e que fazia meditação, ficando dias a fio sem ingerir qualquer alimento ou bebida para controlar a mente, já que aspirava tornar-se, um dia, um “weikza”, ou seja, um feiticeiro-santo com poderes mágicos. Às tantas, a meio da conversa, disse-nos que gostava de ser rico. Quando lhe perguntámos o que faria se tivesse muito dinheiro, não respondeu que viajaria pelo mundo nem que compraria uma casa ou um carro topo-de-gama. O que respondeu, sem hesitação, foi que compraria um carro que lhe permitisse transportar os turistas por conta própria.

Ser rico é diferente para nós e para ele. Às vezes, antes de adormecer, pergunto-me se conseguirá realizar o seu sonho (para nós tão fácil), outras vezes penso naquelas velhinhas deitadas no chão de uma cabana durante a noite, onde não há luz elétrica nem camas como as nossas.

Guia prático para visitar as aldeias Chin

Como chegar às aldeias

Em qualquer hotel de Mrauk U, é possível obter informações sobre guias locais que organizam passeios às aldeias das mulheres Chin. Aos cerca de 30 minutos de transporte terrestre, há que somar duas horas de barco para se chegar à primeira aldeia. Normalmente, estes tours têm a duração de um dia e incluem uma visita ao templo “Kothaung” ou das 90 mil imagens de Buda, além de um almoço simples (mas inesquecível) a bordo do barco, vendo a vida a deslizar à nossa volta.

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